segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Um povo lutou contra os eucaliptos...

Reportagem da Notícias Magazine (não datada)

Foi o nosso 25 de Abril», diz Maria João Sousa, que tinha 15 anos quando a revolução chegou à sua terra. No dia 31 de março de 1989, a rebate do sino, 800 pessoas juntaram-se na Veiga do Lila, uma pequena aldeia de Valpaços, e protagonizaram um dos maiores protestos ambientais que alguma vez aconteceram em Portugal.

A ação fora concertada entre sete ou oito povoações de um escondidíssimo vale transmontano, e depois juntaram-se ecologistas do Porto e de Bragança à causa. Numa tarde de domingo, largaram todos para destruir os 200 hectares de eucalipto que uma empresa de celulose andava a plantar na quinta do Ermeiro, a maior propiedade agrícola da região.

À sua espera tinham a GNR, duas centenas de agentes. Formavam uma primeira barreira com o objetivo de impedir o povo de arrancar os pés das árvores, mas eram poucos para uma revolta tão grande.

Maria João, que nesse dia usava uma camisola vermelha impressa com a figura do Rato Mickey, nem deu pelo polícia que lhe agarrou no braço. «Ide para casa ver os desenhos animados», atirou-lhe, mas a rapariga restaurou a liberdade de movimentos com um safanão: «Estava tão convicta que não sentia medo nenhum. Naquele dia ninguém sentia medo nenhum. Eles atiravam tiros para o ar e parecia que tínhamos uma força qualquer a fazer-nos avançar.»

A tensão subiria de tom ao longo da tarde. «Houve ali uma altura em que pensei que as coisas podiam correr para o torto», diz agora António Morais, o cabecilha dos protestos. Havia agentes de Trás os Montes inteiros, da Régua e de Chaves, de Vila Real e Mirandela.

Mas também lá estava a imprensa, e ainda hoje o homem acredita que foi por isso que a violência não escalou mais. Algumas cargas, pedrada de um lado, cacetadas do outro, mas nada que conseguisse calar um coro de homens e mulheres, canalha e velharia: «Oliveiras sim, eucaliptos não».


«Não queríamos arder aqui todos»

A guerra tinha começado a ser preparada um par de meses antes, quando António Morais, proprietário de vários hectares de olival no Lila, percebeu que uma empresa subsidiária da Soporcel se preparava para substituir 200 hectares de oliveiras por eucaliptal para a indústria do papel. «Tinham recebido fundos perdidos do Estado para reflorestar o vale sem sequer consultarem a população», revolta-se ainda, 28 anos depois.
«Nessa altura o ministério da agricultura defendia com unhas e dentes a plantação de eucalipto.» Álvaro Barreto, titular da pasta, fora anos antes presidente do conselho de administração da Soporcel e tornaria ao cargo em 1990, pouco depois das gentes de Valpaços lhe fazerem frente.
António Morais foi o cabecilha dos protestos. Percorrendo as aldeias depois da missa foi convencendo o povo que o lucro fácil trairia prejuízos a médio prazo.

«A tese dominante dos governos de Cavaco Silva era que urgia substituir o minifúndio e a agricultura de subsistência por monoculturas mais rentáveis, era preciso rentabilizar a floresta em grande escala», diz António Morais. O eucalipto adivinhava-se uma solução fácil.
Crescia rápido e tinha boas margens de lucro. Portugal, aliás, ganharia em poucos anos um papel de destaque na indústria de celulose e os pequenos proprietários poderiam resolver muitos problemas de insolvência abastecendo as grandes empresas com uma floresta renovada. A teoria acabaria por vingar em todo o país, sobretudo no interior centro e norte. Mas não em Valpaços.

«Comecei a ler coisas e percebi que o eucalipto nos traria grandes problemas», continua António Morais. «Por um lado, numa região onde a água é tudo menos abundante, teríamos grandes problemas de viabilidade das outras culturas. Nomeadamente o olival, que sempre foi a riqueza deste povo. E depois havia os incêndios, que eram o diabo. São árvores altamente combustíveis e que atingem uma altura muito grande.»
Na terra quente transmontana o ano são oito meses de inverno e quatro de inferno. O fogo, tinha ele a certeza, chegaria com aquele arvoredo.
Uns meses antes da guerra, começou a conversar sobre o seu medo com algumas das mais relevantes personalidades do vale. Grandes proprietários, políticos da terra, as famílias mais reconhecidas. «Lentamente começou a formar-se um consenso de que o lucro fácil do eucalipto seria a médio prazo a nossa desgraça. Não queríamos deixar secar a nossa terra. E não queríamos arder aqui todos. Tínhamos de destruir aquele eucaliptal, custasse o que custasse.»


Anatomia da conspiração

O núcleo duro estava formado, era constituído por dezena e meia de agricultores capazes de mobilizar o resto do povo. «Aos domingos, íamos às aldeias e no fim da missa explicávamos às pessoas o que podia acontecer à nossa terra», lembra Natália Esteves, descendente de uma família de grandes produtores de azeite feita de repente líder de protesto ecológico. «E também íamos de casa em casa, esclarecer quem não tinha estado nas assembleias.»
Ao início houve renitência, a madeira valeria sempre mais do que a azeitona, e a castanha ainda não rendia o que rende hoje. «Mas tentámos sempre centrar a conversa no que aconteceria daí a uns anos, dizer que os eucaliptos secariam os solos e o povo ficaria refém de uma única cultura, que se alguma coisa corresse mal não teriam mais nada.»
João Sousa esteve na organização dos protestos à socapa, era presidente da freguesia da Veiga do Lila. «Dizem que somos um povo sem educação mas afinal nós é que estávamos certos.»

O que mais assustava aquela gente, no entanto, era o fogo. «Onde há eucalipto, tudo arde. E então o povo já não chamava a árvore pelo nome, mas por fósforos.» A primeira batalha estava ganha: tinham o apoio da população.
João Sousa era nessa altura presidente da junta da Veiga do Lila. «Oficialmente não podia dizer que era contra os eucaliptos, nem ir contra a polícia. Mas, quando falava com as pessoas, dizia-lhes o que haviam de fazer», conta agora com uma gargalhada e sem ponta de medo.
«Vê, nem um eucalipto plantado. E o nosso vale há mais de 30 anos que não arde», diz João de Sousa.
«Então se tínhamos o melhor azeite do país íamos dar cabo dele para enriquecer uns ricalhaços de fora?» Tem 86 anos e uma destreza de 30, hoje estuga o passo para mostrar a zona que podia ter sido caixa de fósforos. «Vê, nem um eucalipto plantado. E o nosso vale há mais de 30 anos que não arde. Se o povo não se tem unido hoje estávamos a viver a mesma desgraça que vimos por esse país fora.»
Essa é aliás a conversa mais recorrente por estes dias no vale do Lila. A tragédia florestal portuguesa dá a este povo a impressão que eles sim, tinham razão há muitos anos, quando o governo e as autoridades lhes diziam o contrário.
«Podem achar que somos gente do campo, sem educação nem conhecimento, mas nós cá soubemos defender a nossa terra», diz o velhote. «Temos chorado muito por esta gente que perdeu vidas e animais e casas. E há uma coisa que o meu povo sabe: se temos deixado ficar os eucaliptos, também hoje choraríamos pelos nossos.»


A guerra

Há uns dias que os combates tinham começado. Ataques furtivos do povo, desorganizadamente, para arrancar pés de eucalipto nos limites do Ermeiro. Duas semanas antes da guerra, no Domingo de Ramos, as coisas aqueceram.
«Juntámos duas centenas de pessoas aqui destas aldeias e os donos da empresa chamaram a GNR», lembra António Morais. «Quando eles chegaram já tínhamos dado cabo de uns bons 50 hectares de eucaliptal.» Nesse dia não houve confrontos, porque o povo fugiu. Mas anunciaram a alto e bom som que voltariam depois da Páscoa.
Esse ataque tinha feito notícia no Jornal de Notícias e trazido uma mão-cheia de jornalistas à terra, nomeadamente Miguel Sousa Tavares, da RTP. «Percebi que as coisas estavam a tornar-se muito grandes e foi então que contactei a Quercus. Precisávamos de ajuda.»
Do outro lado da linha atendeu Serafim Riem, que dirigia o núcleo do Porto da organização ambientalista. O ecologista partiu imediatamente para o terreno. Nesses dias ouviriam do parlamento em Lisboa várias palavras de solidariedade. Sobretudo do PCP, d’Os Verdes e de um jovem deputado socialista chamado José Sócrates.

Agora não valia a pena esconder mais nada. A 31 de março de 1989, domingo depois da Páscoa, o povo juntar-se-ia todo na Veiga do Lila para dar cabo do eucaliptal que restasse. A aldeia enchera-se de jornalistas, havia até um helicóptero a cobrir os acontecimentos do ar.
A direção nacional da Quercus demarcar-se-ia da organização dos protestos através de um comunicado, mas os núcleos do Porto e Bragança encheriam cada um o seu autocarro de ambientalistas carregados de cartazes. Às duas da tarde o sino começou a tocar a rebate. Oito centenas de vozes entoavam «oliveiras sim, eucaliptos não» e largaram por um caminho de terra batida para a quinta do Ermeiro.

Não era preciso usar enchadas nem sacholas, os eucaliptos tinham sido plantados há pouco tempo e arrancavam-se com as mãos. A polícia tentava fazer uma linha de defesa, mas duas centenas de agentes não chegavam para aquela gente toda.

Numa hora, foram arrancados 180 hectares de pequenas árvores. «Alguns gozavam com os agentes na cara e levaram umas bastonadas das boas», recorda Natália Esteves. Os que eram de perto diziam-lhes assim: «Tendes razão, por isso vamos fingir que não vemos.» Viravam as costas e o povo ia subindo o terreno.

Num instante, o casario da quinta tornava-se no último reduto da investida. Uma dezena de guardas saíram a cavalo, era demonstração de força mas não surtiu resultado. A Soporcel tinha construído socalcos para plantar os eucaliptos e, agora, os animais não conseguiam descê-los.

«O povo ia atirando pedras aos guardas, houve um que acertou no cavalo e mandou-o abaixo», diz João Morais. Foi nesse momento que entrou em campo o corpo de intervenção, disposto a levar toda a gente pela frente. «Aí as coisas podiam ter descambado definitivamente.»


Todos por um

A guarda especializada avançava agora colina abaixo com escudos e capacetes. José Oliveira, um agricultor da pequena aldeia de Émeres, tentou escapar pela lateral, mas foi logo caçado pela guarda. No bolso trazia um revólver e foi isso que o tramou. «Levaram-no logo detido para dentro do jipe por posse de arma ilegal», conta agora a sua viúva, Ester.

Aquela detenção marcaria o início do fim da guerra. «As pessoas tinham recuado por causa do corpo de intervenção, mas quando se aperceberam que um dos nossos estava preso começaram a gritar que não arredariam pé enquanto ele não fosse solto», diz António Morais. Ester anui, «foi o vale inteiro que salvou o meu homem.» Agora já não havia pedras, havia gritos. Que libertassem o tio Zé e rápido

Serafim Reim, o homem da Quercus, é que foi lá negociar a libertação com os guardas. Sobravam menos de 20 hectares de eucalipto, o povo deixá-los-ia em paz se soltassem o velhote. Uma hora depois, houve consenso. Identificaram José Oliveira, caçaram-lhe a arma e mais tarde levaram-no a tribunal, mas naquele dia saiu pelo seu pé para os braços da mulher, e daí para casa.

António Morais, Natália Esteves, João Sousa e mais uma dezena de organizadores do protesto também seriam chamados à barra da justiça, um ano depois enfrentaram acusação de invasão de propriedade privada e foram condenados com pena suspensa.
«Ainda vieram uns engenheiros da Soporcel dizer que retirariam a queixa se nos comprometêssemos a não destruir uma nova plantação de eucalipto. Disse-lhes que nem pensar, aqui nunca teríamos árvores dessas no nosso vale.»

Nas noites seguintes arrancou-se à socapa quase tudo o que faltava, ficaram apenas meia dúzia de hectares a rodear o casario da quinta, mais passível de vigia. A Soporcel acabaria por desistir e vender a propriedade e a família que a comprou, quando ousou confessar a Natália Esteves que pensavam plantar eucaliptos, foram logo avisados: «Se os botais nós os arrancamos.»
«A única maneira de travar os incêndios em Portugal é reduzir o eucaliptal e substituí-lo pela floresta autóctone», diz o ambientalista Serafim Riem.
Hoje, o Ermeiro é terra de nogueiras e amendoeiras, oliveiras e pinho. Nunca ardeu. Serafim Riem, o ambientalista da Quercus, diz que até hoje a guerra do povo de Valpaços é um marco, a maior ligação jamais vista no país entre o mundo rural e o ativismo ecológico.

«A única maneira de travar os incêndios em Portugal é reduzir drasticamente o eucaliptal e substituí-lo pela floresta autóctone, que não só tem melhor imunidade ao fogo como gera uma riqueza mais diversificada para as populações.»

Naquele 31 de março de 1989, o povo uniu-se e, diz agora, salvou-se. «Nós é que tínhamos razão», repetem uma e outra vez, repetem todos. Às seis da tarde, depois de José Oliveira ser libertado, um vale inteiro voltou pelo mesmo caminho e juntou-se no principal largo de Veiga do Lila. Mataram-se dois borregos e um leitão, abriram-se presuntos e deitaram-se alheiras à brasa, houve até quem trouxesse uma pipa de vinho. A festa durou noite dentro e foi maior do que qualquer romaria de Santa Bárbara.

À volta da fogueira acabariam por juntar-se também os guardas que horas antes defendiam o Ermeiro. E ali ficaram a comer e beber, vencedores e vencidos, que em Trás-os-Montes nunca se nega hospitalidade. Maria João Sousa nunca tinha visto uma coisa daquelas, nem nunca voltaria a vê-la na sua terra. Foi o 25 de Abril da sua gente. «Há lá coisa mais bonita do que uma revolução.»

sábado, 21 de outubro de 2017

Os negócios do fogo...



Desde sempre que houve Florestas, desde sempre que houve pessoas – e o seu grau de educação sempre tem evoluído. Sempre houve pirómanos e desequilibrados. Sempre houve calor e outros fenómenos meteorológicos propiciadores a fogos. As preocupações com o ambiente têm aumentado (e bem) exponencialmente. Os meios tecnológicos à disposição são cada vez mais e melhores.

Apesar de tudo isto,o número de incêndios florestais não cessa de aumentar e atingiu este ano de 2017 proporções inimagináveis. A área ardida este ano em Portugal é destacadamente superior à soma da área ardida de todos os países da União Europeia. Quase 10% de Portugal é hoje cinza e terra queimada!

Não restam muitas dúvidas de que a principal razão que leva a este aumento de fogos, cuja esmagadora maioria vem a público como tendo origem criminosa – embora sempre difusa – tem a ver com "negócios" a que se convencionou chamar "o negócio do fogo", ou "a indústria do fogo". Ou seja, quanto mais dinheiro o governo anunciar que vai injetar no combate aos fogos, mais fogos irá haver...

Eis algumas hipóteses sem preocupação de hierarquia:
- Ao "negócio" da compra e venda da madeira; a madeira queimada é mais barata, dá lucros a curto prazo, mas é suicidária a longo prazo;
- Às celulosas, no sentido em que poderão querer promover a substituição do coberto vegetal por outro de crescimento mais rápido e melhor para o negócio do papel;
- À especulação imobiliária, no sentido de favorecer o "negócio" da compra e venda de propriedades; - Ao "negócio" da caça privada versus caça pública, atente-se às polémicas havidas;
- Ao "negócio" das indústrias relacionadas com o combate a fogos, viaturas, equipamentos diversos, extintores, compostos químicos, etc., alguns dos quais estão relacionados com elementos da própria estrutura de comando de bombeiros (como chegou a vir a público no ano transato);
- Ao "negócio" dos meios aéreos para combate a incêndios. Este negócio disparou nos últimos anos. Até ao governo do Engenheiro Guterres a maioria dos meios aéreos envolvidos pertencia à Força Aérea (FA), que tinha gasto nos anos 80, cerca de 200.000 contos em equipamentos. Foi no longínquo ano de 1997 que o Secretário de Estado Armando Vara entendeu (sabendo-se o passado deste homem, já se pode adivinhar o porquê desta decisão!), que não competia à FA intervir nos incêndios mas sim que deveriam ser contratadas empresas civis. Compreende-se mal esta atitude a não ser pela sanha existente por parte da maioria dos políticos em menorizar os militares e as Forças Armadas. Certo é, também, que a FA não paga comissões.

Elencados todos os negócios que lucram, diretamente ou indiretamente, com a indústria subjacente aos incêndios, compete ao Ministério da Administração Interna apurar e quantificar esses lucros. Fala-se hoje que os bombeiros podem receber 50 Euros por cada dia de combate (não sei se é verdade isto). Mas também se sabe que o aluguer de meios aéreos para combate a incêndios a empresas privadas origina lucros de milhões de euros. Ora se houver necessidade de estender os prazos de aluguer a períodos antes e depois do verão (a chamada fase Charlie) o lucro dessas empresas pode vir a duplicar. E o certo é que, curiosa e estranhamente, os dois dias com maior número de ocorrências e ignições em 2017 ocorreram precisamente fora do período normal do contrato dos meios aéreos.

Não posso deixar de citar o que me disse um dia um agricultor, do alto dos seus 80 anos e uma vida passada no meio da natureza: "No dia anterior ao maior incêndio aqui na aldeia, apareceram aqui umas avionetas. E eu vi alguma coisa cair dessas avionetas ali para o meio da serra. Não sei o que seria, mas o que eu sei é que umas horas mais tarde a serra estava toda a arder!"

Não deveria investigar a Polícia Judiciária o que lançam essas avionetas ou helicópteros, em vez de se procurar o incendiário solitário, pirómano ou desequilibrado psicologicamente, de que tanto se fala? Perguntem às populações se nas horas que antecederam as ignições observaram algum movimento suspeito por aeronaves? E depois é só investigar de onde partiram e a quem pertencem. Será assim tão difícil ou não há interesse em encontrar os verdadeiros responsáveis?

Em função do que se disse anteriormente, sou de opinião que os meios de combate a incêndios devem estar na FA. O Estado deverá investir na aquisição de novos meios, reforçando o dispositivo de combate aéreo, no lugar de pagar milhões de euros todos os anos a empresas e fundos de investimento donos desses dispositivos que, obviamente, pretendem ter lucro sem olhar a meios. É que, aparentemente, já não se trata de um investimento sazonal, ao contrário do que acontecia até aqui. Paralelamente a esse reforço, que permitiria que os meios de combate estivessem sempre operacionais e disponíveis, independentemente de contratos de extensão de prazos (também estes de milhões), acordos de cooperação entre países amigos poderão e deverão ser celebrados para otimizar o investimento feito.

Nota: Este texto apoia-se em dados de um artigo de opinião, publicado originalmente em 2004 por João Brandão Ferreira.

sábado, 16 de setembro de 2017

Nova Zona Empresarial Água Longa: Um Projeto Insustentável




Andreia Neto, candidata da coligação PPD/PSD.CDS-PP, tem insistido que um dos seus principais projetos eleitorais é a criação de um parque empresarial de 150 hectares na freguesia de Água Longa. Segundo uma recente entrevista a um jornal bimensal que recebi gratuitamente na minha caixa de correio pela primeira vez, “Notícias de Santo Tirso”, Andreia Neto diz que “Santo Tirso deve seguir o exemplo de Valongo, do outro lado da autoestrada”.

A ideia da criação de emprego para fixar população é o principal argumento por detrás deste projeto, aproveitando os melhores acessos do concelho ao Porto, Sul e Galiza. Seria uma boa iniciativa, se não implicasse um impacto extremamente negativo para a população das freguesias do Vale do Leça, que passarei a elencar em cinco pontos.

1.       Projeto Megalómano. 150 hectares de terreno correspondem a 150 campos de futebol, espaço suficiente para alojar muitas centenas de grandes novas empresas. Tratando-se de empresas de pequena e média dimensão, de cariz tecnológico, podemos mesmo falar de milhares de empresas. Este número é descabido, se considerarmos que no concelho todo temos pouco mais de 5000 empresas, e em 2014 se criaram apenas 195 empresas novas (segundo números da candidatura de Andreia Neto).

2.       Destruição de 150 hectares de área ecológica protegida. O local escolhido pela candidata é uma mancha florestal que integra a reserva ecológica, sendo determinante para o equilíbrio ambiental de todo o Vale do Leça e para a qualidade de vida das populações, nomeadamente para as futuras gerações. No programa eleitoral da candidata, encontra-se plasmado que “a sustentabilidade ambiental e a consequente melhoria da qualidade de vida será uma prioridade. A Câmara Municipal deve privilegiar a educação ambiental, e dar o exemplo, e assim o faremos.” Ora acontece que este projeto, contemplando a destruição de 150 hectares de floresta, cujo impacto ambiental seria brutal, descredibiliza completamente este programa eleitoral. Os eleitores facilmente se apercebem que a área de ambiente e sustentabilidade não será uma prioridade, antes pelo contrário.

3.       Descaracterização das Freguesias do Vale do Leça. Qualquer munícipe de Santo Tirso que atravesse as freguesias de Vale do Leça, rapidamente constata que este território tem características próprias, em particular um traço marcadamente rural, que o distingue do resto do concelho. Só assim se justifica que estas freguesias ainda não tenham, em pleno século XXI, abastecimento de água de rede pública. Se a água ainda não chegou a estas freguesias, não é com certeza oportuno que cheguem subitamente centenas de novas empresas. Os munícipes do Vale do Leça viveram estes anos sem água, graças a um solo arável e um ambiente despoluído, rodeados de manchas florestais. Não aceitarão que esse solo seja contaminado, o ambiente poluído e a mancha florestal destruída. A ambição da candidata tem aqui um preço demasiado a pagar.

4.       Trânsito de pesados insustentável. Os habitantes das freguesias do Vale do Leça que têm que se deslocar diariamente para o Porto, como é o meu caso, já constataram que a estrada N105, que faz a ligação entre Água Longa e o nó da A41 de Alfena, se encontra repleta de camiões desde a abertura do novo entreposto da Jerónimo Martins. Trata-se de camiões da empresa ZAS-Transportes, contratada para trabalhar exclusivamente para o grupo Jerónimo Martins (Pingo Doce), e por isso facilmente identificáveis. Há informações publicadas que dão conta que estes camiões estão proibidos de circular em autoestradas, e é o que se constata no terreno. É, no mínimo, legítimo perguntar à candidata Andreia Neto o que aconteceria se estas novas empresas (mesmo uma pequena parte) também proibissem o transporte de mercadorias por autoestrada. Com este exemplo concreto, como poderá Andreia Neto prometer que “não trará qualquer problema de trânsito de pesados porque sairão e entrarão na autoestrada diretamente das suas empresas”?  O trânsito na N105 seria caótico, impossibilitando os munícipes das freguesias do Vale do Leça de ali circularem. Paradoxalmente, teríamos os pesados de transporte a circular na estrada nacional e os habitantes obrigados a pagar as portagens na A41, com claro prejuízo para os munícipes de Santo Tirso.

5.       Poluição ambiental e visual. Conforme já mencionado, o território do Vale do Leça subsiste essencialmente da agricultura e pecuária, graças a um solo arável e descontaminado, assim como abundância de água. A candidata da coligação promete “um parque para grandes empresas não poluidoras que criarão empregos de qualidade”. Ao destruir 150 hectares de floresta numa zona elevada da Serra da Agrela, as consequências seriam dramáticas para as populações do sopé desta Serra, principalmente devido à lixiviação e contaminação dos solos e águas. A falta de água acabaria, também, por ser uma consequência. Uma zona de lazer muito agradável e muito explorada para passeios pedestres, BTT e motocross seria substituída por enormes pavilhões de betão e metal, daqueles que se constroem em 3 meses e ali ficam para sempre. Seria uma herança muito pesada para uma população, que veria a sua qualidade de vida diminuir drasticamente e os terrenos e habitações desvalorizados. O exemplo de áreas empresariais ao abandono do concelho vizinho de Paços de Ferreira, e inclusive de Santo Tirso, deveriam fazer refletir a candidata. O aproveitamento de áreas empresariais próximas, como a zona de iniciativa empresarial que nasceu espontaneamente em Água Longa, mais concretamente no percurso que liga a freguesia ao concelho da Trofa através da EN 318, seria uma decisão aceitável e que não colidiria com os interesses das populações.



Não existem muitas áreas de mancha florestal com esta dimensão no concelho de Santo Tirso, com a vantagem de estar muito próximo da cidade do Porto. Uma estratégia de longo prazo, componente crítica para a sustentabilidade e, em última análise, a sobrevivência humana, consiste em manter áreas representativas dos vários ecossistemas do mundo num estado razoavelmente intacto e funcional. O designado ecoturismo está na ordem do dia, à escala global, sendo o principal desafio que a indústria do turismo enfrenta. Esta área ecológica protegida tem um enorme potencial turístico por explorar, em particular destinado ao ecoturismo e turismo de natureza. Pede-se que um candidato à Câmara Municipal tenha visão de longo prazo, o que implica conhecimento de programas estratégicos europeus e mundiais. Estamos rodeados de casos que demonstram que a ambição do curto prazo tem efeitos nefastos e irreversíveis, pagos pelas gerações futuras.

Não querendo acreditar que a candidata Andreia Neto, natural de S. Martinho do Campo, pretenda prejudicar intencionalmente as populações do Vale de Leça, é no mínimo plausível pensar que o possa fazer por falta de conhecimento destas freguesias. Enquanto munícipe e eleitor de Santo Tirso, que nunca teve qualquer envolvimento em movimentos políticos, independentes ou partidários, não ficaria bem com a minha consciência se não alertasse a equipa da candidata Andreia Neto, para os impactos negativos deste projeto eleitoral. Faço-o como pai, que deseja que os filhos cresçam num ambiente saudável e descontaminado, como hoje existe. Faço-o, também, na qualidade de cidadão, que deseja o melhor para a comunidade da sua freguesia, o seu concelho e o seu país.